12.01.2008: Revolta Punk no Lótus Bar - Por Nuno Martins
Ouvi dizer que a imprensa foi convidada, mas não apareceu. E no entanto, a sala do Lótus Bar, em Cascais, que parece não enchia há um ano, estava à pinha. Apinhada de jovens, tantos deles provenientes da margem sul, mas não só, que conhecem as letras e cantaram incessantemente as canções da REVOLTA e dos K2O3, duas das melhores bandas do punk-rock nacional. Concentrar-me-ei na primeira, oriunda de Almada, bastião histórico do rock português.
Acerca da sua performance em palco, direi, parafraseando o DJ de serviço, que «está cada vez melhor, a coesão e entendimento entre os músicos torna tudo mais “oleado”, os temas agarram logo o pessoal que se agita nas filas da frente» [1] e ajuntarei que, para mim, António Côrte-Real (guitarra e voz) é hoje um dos melhores guitarristas da música rock lusitana.
A REVOLTA é uma banda de grandes causas e com referências musicais bem definidas. Orgulha-se dos temas e projectos que, sobrevivendo à poeira do tempo, ficaram na história do universo rock português e, ainda que sendo uma banda de originais, assume esse legado descomplexadamente, perpetuando-o no imaginário das gerações mais novas. É um sinal de maturidade estética, histórica e material, que a indústria discográfica não acompanha, esquivando-se a arriscar em novos valores e comprometendo assim o processo de renovação artística em Portugal.
Como eu e tantos outros da minha geração, cresceram a ouvir os grupos que brotaram, directa ou indirectamente, do chamado boom do Rock português, UHF à cabeça, no princípio dos anos 80. O mais popular Anzol, dos Rádio Macau e Persona Non Grata, dos UHF, seguramente uma das mais belas declarações de rebeldia jamais feita no nosso país, figuram assiduamente no alinhamento do power trio fundado em Setembro de 2006 por Bruno Alves (baixo e voz), Anselmo Alves (bateria e voz) e pelo já referido António Côrte-Real, também guitarrista dos UHF.
Mas não esquece igualmente, como a canção Eu quero ser atesta, os pioneiros do movimento punk, os Ramones. E que bonita forma de homenageá-los: cantando-os na língua de Camões [2], na senda do que fizeram os Peste & Sida, «“pais” do primeiro “boom”» [3] da música punk em Portugal [4], e transmitindo uma mensagem de amor, esperança e verdade nas relações humanas, com a inteira percepção de que tais sentimentos, associados à confiança nas capacidades do próprio Homem, desempenham um papel crucial nos processos colectivos de genuína transformação social. Como dizia o poeta, “Ninguém está só, onde haja amor. / Onde haja amor, só há verdade.” [5]
De resto, a denúncia deste “caos organizado que é o capitalismo” [6], bem como da sua fase superior, o imperialismo, está bem viva no tema Bush, esse “rei da poluição” e “da desordem”. No dizer lapidar da REVOLTA, esse “rei sem ordem”! Por seu turno, Ter ou não ter (a questão é) apela à luta e a uma atitude consciente e interventiva na sociedade, tendo sempre presente a questão da apropriação pelo povo dos meios de produção.
Ninguém manda em ti, canção-hino do grupo com direito a bis, é um espelho perfeito dos tempos cinzentos que vivemos, “um período muito medíocre e negativo da nossa História.” [7] De uma forma crua, agressiva e directa, lembra-nos que “hoje quem triunfa não são os bons, são os oportunistas, os moldáveis.” [8] De facto, «temo-nos arrastado, penosamente, assistindo ao descalabro de um país que consente injustiças gritantes e transforma a mediocridade em valor impositivo. O “respeitinho é muito bonito” é uma fórmula nacional que lacra o nosso destino e faz de nós a massa informa que se não revolta. Cada ano que passa, cada ano pior.» [9]
E apesar de tudo, da mentira que “adquiriu carta-de-alforria” [10], da trafulhice que “sai impune” [10], dos abjurantes que “são premiados” [10], dos “traidores aplaudidos” [10], dos “subservientes obsequiados” [10], dos “incompetentes promovidos” [10], da indiferença que reina e da abulia que “aparenta ser endémica” [10], ainda há quem resista e se manifeste, pequenos grupos de pessoas, é certo, algumas comunidades disseminadas para quem “a integridade, a compaixão, a indulgência e a dignidade” [10] continuam como valores de referência.
João Pedro Almendra, vocalista original e actual dos Peste & Sida teve a coragem e a gentileza de afirmar o seguinte – «valorizamos imensas bandas que andam aí: Simbiose, Revolta, Gazua… Conheço “n” bandas que andam aí agora a fazer coisas interessantes e que olham para nós de certo modo como, por exemplo, nós olhávamos para os Xutos & Pontapés numa determinada altura.» [11]
Apraz-me constatar esta sincera solidariedade intergeracional. Aliás, João Ribas, outro veterano da cena punk em Portugal, antigo guitarrista e voz dos Censurados (projecto com o qual, em meu entender, a REVOLTA tem bastantes parecenças, não só em termos líricos, mas também ao nível das semelhanças vocais entre Bruno Alves e João Ribas) e actual vocalista dos Tara Perdida, esteve igualmente no Lótus Bar. Foi convidado a partilhar o palco, aceitou, cantou com a REVOLTA e respectivos fãs, com o público em geral e pelos vistos gostou do que viu e ouviu.
O espírito do punk-rock é isso mesmo: para além duma forte atitude interventiva, assenta na igualdade e numa efectiva comunhão entre músicos e audiência, assistindo a um novo rejuvenescimento após uma travessia do deserto, que deixou um espaço musical vago, que o hip-hop aproveitou para preencher e tem vindo a capitalizar sobremaneira.
O punk está bem e recomenda-se. Pena é que muita gente com responsabilidades no meio musical ande distraída, casual ou deliberadamente. Não é o caso dos muitos jovens que compareceram aos concertos desse mágico dia 12 de Janeiro, e muito menos desse mítico gigante que dá pelo nome artístico de Cameraman Metalico, que também não faltou à chamada e cujo conhecimento e experiência acumulados ao longo dos anos lhe permitem dizer simplesmente isto: “Sinceramente, se eu tivesse uma editora assinava-os já hoje!” [12]
Mas não proferia o sábio que “hoje quem triunfa não são os bons”? Façamos por reverter esta inversão de valores e não tenhamos medo de combater os “lóbis poderosos e muito organizados que continuam a praticar o «valor do venha a mim».” [7]
Notas:
[1] DJ Billy, Noite no Lótus com Revolta e K2O3, http://www.billy-news.blogspot.com/, 19 de Janeiro de 2008.
[2] Eu quero ser é uma bela versão do tema original I Wanna Be Your Boyfriend dos Ramones, do álbum de estreia de nome igual ao da banda, lançado em 1976.
[3] banho de realidade, Fernando Reis entrevista João San Payo e João Pedro Almendra a propósito do mais recente disco dos Peste & Sida, Cai No Real, Revista LOUD!, Ano VIII – #80, Setembro de 2007, página 24.
[4] Poucos são aqueles que nunca terão ouvido Sol da Caparica, excelente versão da malha California Sun, original da dupla Glover/Levy e tocada pelos Ramones na noite de 31 de Dezembro de 1977 no Rainbow Theatre, em Londres, espectáculo memorável que foi gravado e posteriormente editado sob o título It`s Alive, em 1979.
[5] Armindo Rodrigues, Sequência da Alvorada – O Grito Concreto – XXXI, Lisboa, Livros Horizonte, 1985, página 39.
[6] Armindo Rodrigues, Sequência da Alvorada – O Grito Concreto – IX, Lisboa, Livros Horizonte, 1985, página 17.
[7] Fernando Dacosta em entrevista a João Naia, O Diabo, 3 de Janeiro de 2008, página 12.
[8] Fernando Dacosta em entrevista a João Naia, O Diabo, 3 de Janeiro de 2008, página 13.
[9] Baptista Bastos, Palavras para os dilectos, http://www.jornaldenegocios.pt/default.asp?Session=&SqlPage=Content_Opiniao&CpContentId=308094, 21 de Dezembro de 2007 (itálico meu, N. M.).
[10] Baptista Bastos, Palavras para os dilectos, http://www.jornaldenegocios.pt/default.asp?Session=&SqlPage=Content_Opiniao&CpContentId=308094, 21 de Dezembro de 2007.
[11] banho de realidade, João San Payo e João Pedro Almendra em entrevista a Fernando Reis a propósito do mais recente disco dos Peste & Sida, Cai No Real, Revista LOUD!, Ano VIII – #80, Setembro de 2007, página 24 (itálico meu, N. M.).
[12] http://profile.myspace.com/index.cfm?fuseaction=user.viewprofile&friendid=191081510, 15 de Janeiro de 2008.
A REVOLTA é uma banda de grandes causas e com referências musicais bem definidas. Orgulha-se dos temas e projectos que, sobrevivendo à poeira do tempo, ficaram na história do universo rock português e, ainda que sendo uma banda de originais, assume esse legado descomplexadamente, perpetuando-o no imaginário das gerações mais novas. É um sinal de maturidade estética, histórica e material, que a indústria discográfica não acompanha, esquivando-se a arriscar em novos valores e comprometendo assim o processo de renovação artística em Portugal.
Como eu e tantos outros da minha geração, cresceram a ouvir os grupos que brotaram, directa ou indirectamente, do chamado boom do Rock português, UHF à cabeça, no princípio dos anos 80. O mais popular Anzol, dos Rádio Macau e Persona Non Grata, dos UHF, seguramente uma das mais belas declarações de rebeldia jamais feita no nosso país, figuram assiduamente no alinhamento do power trio fundado em Setembro de 2006 por Bruno Alves (baixo e voz), Anselmo Alves (bateria e voz) e pelo já referido António Côrte-Real, também guitarrista dos UHF.
Mas não esquece igualmente, como a canção Eu quero ser atesta, os pioneiros do movimento punk, os Ramones. E que bonita forma de homenageá-los: cantando-os na língua de Camões [2], na senda do que fizeram os Peste & Sida, «“pais” do primeiro “boom”» [3] da música punk em Portugal [4], e transmitindo uma mensagem de amor, esperança e verdade nas relações humanas, com a inteira percepção de que tais sentimentos, associados à confiança nas capacidades do próprio Homem, desempenham um papel crucial nos processos colectivos de genuína transformação social. Como dizia o poeta, “Ninguém está só, onde haja amor. / Onde haja amor, só há verdade.” [5]
De resto, a denúncia deste “caos organizado que é o capitalismo” [6], bem como da sua fase superior, o imperialismo, está bem viva no tema Bush, esse “rei da poluição” e “da desordem”. No dizer lapidar da REVOLTA, esse “rei sem ordem”! Por seu turno, Ter ou não ter (a questão é) apela à luta e a uma atitude consciente e interventiva na sociedade, tendo sempre presente a questão da apropriação pelo povo dos meios de produção.
Ninguém manda em ti, canção-hino do grupo com direito a bis, é um espelho perfeito dos tempos cinzentos que vivemos, “um período muito medíocre e negativo da nossa História.” [7] De uma forma crua, agressiva e directa, lembra-nos que “hoje quem triunfa não são os bons, são os oportunistas, os moldáveis.” [8] De facto, «temo-nos arrastado, penosamente, assistindo ao descalabro de um país que consente injustiças gritantes e transforma a mediocridade em valor impositivo. O “respeitinho é muito bonito” é uma fórmula nacional que lacra o nosso destino e faz de nós a massa informa que se não revolta. Cada ano que passa, cada ano pior.» [9]
E apesar de tudo, da mentira que “adquiriu carta-de-alforria” [10], da trafulhice que “sai impune” [10], dos abjurantes que “são premiados” [10], dos “traidores aplaudidos” [10], dos “subservientes obsequiados” [10], dos “incompetentes promovidos” [10], da indiferença que reina e da abulia que “aparenta ser endémica” [10], ainda há quem resista e se manifeste, pequenos grupos de pessoas, é certo, algumas comunidades disseminadas para quem “a integridade, a compaixão, a indulgência e a dignidade” [10] continuam como valores de referência.
João Pedro Almendra, vocalista original e actual dos Peste & Sida teve a coragem e a gentileza de afirmar o seguinte – «valorizamos imensas bandas que andam aí: Simbiose, Revolta, Gazua… Conheço “n” bandas que andam aí agora a fazer coisas interessantes e que olham para nós de certo modo como, por exemplo, nós olhávamos para os Xutos & Pontapés numa determinada altura.» [11]
Apraz-me constatar esta sincera solidariedade intergeracional. Aliás, João Ribas, outro veterano da cena punk em Portugal, antigo guitarrista e voz dos Censurados (projecto com o qual, em meu entender, a REVOLTA tem bastantes parecenças, não só em termos líricos, mas também ao nível das semelhanças vocais entre Bruno Alves e João Ribas) e actual vocalista dos Tara Perdida, esteve igualmente no Lótus Bar. Foi convidado a partilhar o palco, aceitou, cantou com a REVOLTA e respectivos fãs, com o público em geral e pelos vistos gostou do que viu e ouviu.
O espírito do punk-rock é isso mesmo: para além duma forte atitude interventiva, assenta na igualdade e numa efectiva comunhão entre músicos e audiência, assistindo a um novo rejuvenescimento após uma travessia do deserto, que deixou um espaço musical vago, que o hip-hop aproveitou para preencher e tem vindo a capitalizar sobremaneira.
O punk está bem e recomenda-se. Pena é que muita gente com responsabilidades no meio musical ande distraída, casual ou deliberadamente. Não é o caso dos muitos jovens que compareceram aos concertos desse mágico dia 12 de Janeiro, e muito menos desse mítico gigante que dá pelo nome artístico de Cameraman Metalico, que também não faltou à chamada e cujo conhecimento e experiência acumulados ao longo dos anos lhe permitem dizer simplesmente isto: “Sinceramente, se eu tivesse uma editora assinava-os já hoje!” [12]
Mas não proferia o sábio que “hoje quem triunfa não são os bons”? Façamos por reverter esta inversão de valores e não tenhamos medo de combater os “lóbis poderosos e muito organizados que continuam a praticar o «valor do venha a mim».” [7]
Notas:
[1] DJ Billy, Noite no Lótus com Revolta e K2O3, http://www.billy-news.blogspot.com/, 19 de Janeiro de 2008.
[2] Eu quero ser é uma bela versão do tema original I Wanna Be Your Boyfriend dos Ramones, do álbum de estreia de nome igual ao da banda, lançado em 1976.
[3] banho de realidade, Fernando Reis entrevista João San Payo e João Pedro Almendra a propósito do mais recente disco dos Peste & Sida, Cai No Real, Revista LOUD!, Ano VIII – #80, Setembro de 2007, página 24.
[4] Poucos são aqueles que nunca terão ouvido Sol da Caparica, excelente versão da malha California Sun, original da dupla Glover/Levy e tocada pelos Ramones na noite de 31 de Dezembro de 1977 no Rainbow Theatre, em Londres, espectáculo memorável que foi gravado e posteriormente editado sob o título It`s Alive, em 1979.
[5] Armindo Rodrigues, Sequência da Alvorada – O Grito Concreto – XXXI, Lisboa, Livros Horizonte, 1985, página 39.
[6] Armindo Rodrigues, Sequência da Alvorada – O Grito Concreto – IX, Lisboa, Livros Horizonte, 1985, página 17.
[7] Fernando Dacosta em entrevista a João Naia, O Diabo, 3 de Janeiro de 2008, página 12.
[8] Fernando Dacosta em entrevista a João Naia, O Diabo, 3 de Janeiro de 2008, página 13.
[9] Baptista Bastos, Palavras para os dilectos, http://www.jornaldenegocios.pt/default.asp?Session=&SqlPage=Content_Opiniao&CpContentId=308094, 21 de Dezembro de 2007 (itálico meu, N. M.).
[10] Baptista Bastos, Palavras para os dilectos, http://www.jornaldenegocios.pt/default.asp?Session=&SqlPage=Content_Opiniao&CpContentId=308094, 21 de Dezembro de 2007.
[11] banho de realidade, João San Payo e João Pedro Almendra em entrevista a Fernando Reis a propósito do mais recente disco dos Peste & Sida, Cai No Real, Revista LOUD!, Ano VIII – #80, Setembro de 2007, página 24 (itálico meu, N. M.).
[12] http://profile.myspace.com/index.cfm?fuseaction=user.viewprofile&friendid=191081510, 15 de Janeiro de 2008.
Nuno Martins
6 Comments:
Boa Nuno, assim é que é!
Morde-lhe as canelas!
Bela escrita! CM
Obrigado pelas tuas palavras Nuno. A tua analise mostra em escrita aquilo que a Revolta é, sem disfarces.
Obrigado António e obrigado ACR!
Espero continuar a ver-vos nos concertos e a saborear o vosso trabalho artístico de elevada qualidade!
Um grande abraço aos dois. Continuem!
Vou velos a Setúbal.
J.P
Quatro concertos que aí vêm e que eu não vou perder:
7 de Março - Peste & Sida no Lótus Bar;
8 de Março - The Cure no Pavilhão Atlântico;
28 de Março - UHF na Aula Magna;
26 de Abril - Revolta e Gazua no Incomodo Bar (Anjos - Lisboa).
Força pessoal!!!
Abraços
Só para fazer uma correcção:
Dia 26 de Abril - Revolta e Gazua no Incomodo Bar, em Santos, e não nos Anjos, como antes referi.
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